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VALOR REAL

Notas de um Perito e Avaliador de Artigos com Metais Preciosos e Materiais Gemologicos. Os meus estudos, investigações e avaliações sobre algumas das minhas paixões: ourivesaria, numismática, pedras preciosas, ...

Património em perigo

13.05.12 | Carlos Tavares

Portugal está a derreter parte da sua história da joalharia

Por Cláudia Carvalho no Jornal "Público de 21 de Abril de 2012

 

Do século XVII ao século XX, independentemente da história ou do autor, o destino das peças nas lojas de ouro é o forno, onde são derretidas e transformadas em lingotes.

 

Joalharia e peças de ouro e prata com valor histórico e artístico estão a ser derretidas pelas lojas de compra e venda de ouro, que só estão interessadas no valor do metal. Aí, um anel do século XIX, todo trabalhado à mão, terá o mesmo destino que uma aliança fabricada em massa nos dias de hoje e aquilo que fará diferenciar o seu valor será apenas o peso do metal. Uma realidade que é cada vez mais nítida, devido à crise financeira e à procura de dinheiro rápido, mas que também é difícil de se contar em números e em exemplos. O mercado é grande e complexo e ninguém quer falar e ficar com o peso da responsabilidade da destruição de parte do património cultural português.

João Fernandes, da Fénix Gold, uma empresa de franchising de transacção de metais preciosos e artefactos de ourivesaria, garante que não só têm aparecido peças "com valor artístico mais interessante" como também são "cada vez mais". "Muito antigas e com contrastes interessantes de 1911, 1905", diz ao PÚBLICO, via email, explicando que, apesar dessas características, o máximo que se pode fazer é alertar o cliente para a peça que tem e pagar um pouco mais. Mas avisa: "Têm o mesmo destino", ou seja, vão para o forno com as peças de baixo valor e são derretidas.

"O que vale é a pureza do metal e o peso. É isso que dá o valor da peça, não o facto de ser uma peça artística, não temos mercado para isso", garante Alberto Sampaio, director da Ourinveste, a segunda maior rede de franchising, explicando que, apesar de tudo, não têm aparecido peças históricas. Mas não esconde o cenário nas pratas. "Vemos peças lindíssimas que são desfeitas e derretidas e têm valor histórico".

"Nesta altura de crise este é um cenário real e acontece muito", conta Nuno Vassalo e Silva, director adjunto do Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e especialista na área da ourivesaria, que, apesar de admitir não conhecer o funcionamento destas lojas, se mostra preocupado com tudo o que se poderá estar a perder. "Temo que peças importantes de joalharia, principalmente joalharia popular portuguesa, estejam a ser vendidas nestas lojas", afirma Vassalo e Silva, para quem o mais assustador é "não se saber realmente o que se está a comprar".

Esta é uma situação para a qual Carlos Tavares, avaliador da Casa da Moeda, tem vindo a alertar nos últimos três anos, garantindo que já muito se perdeu. O avaliador fala até de um "atentado ao património da ourivesaria portuguesa" e dá exemplos. "Nestas lojas há de tudo. Estão a ser destruídas peças do séc. XVIII, XIX e XX. Até relógios de bolso já estão a ser derretidos. Não falando nas pratas", diz ao PÚBLICO Carlos Tavares, afirmando que "trabalhos riquíssimos, meses de trabalho de artistas que já não estão cá, vão para o forno, perdendo-se o testemunho do que foi a nossa ourivesaria".

Mas se estas peças têm um valor histórico ou patrimonial importante, que as torna mais valiosas, porque estão a ser vendidas desta forma? Não é difícil de perceber, no contexto actual da crise. Sem dinheiro para fazer face às dívidas, as pessoas socorrerem-se daquilo que têm em casa e que pode ser vendido, e se há alguma coisa que tem valor garantido é o ouro ou a prata. E a verdade é que em Portugal ainda existe muito. "Portugal foi sempre um grande consumidor de ouro", explica Gonçalo Vasconcelos e Sousa, professor catedrático da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa e autor de várias publicações sobre joalharia. Não fala Vasconcelos e Sousa apenas na tradição de comprar e oferecer ouro, que tende a passar de geração em geração, como também da tradição artística portuguesa. "No século XIX há um conjunto de correntes estéticas, nomeadamente de revivalismos, muito interessantes. E há peças que vêm com estojos de época, que os contextualizam e os fazem aumentar de valor. Já no século XX podemos ter peças Arte Nova e, nos anos 20 e 30, objectos Art Déco, alguns deles muito curiosos".

Peças que, na sua maioria, se chegassem às leiloeiras ou aos antiquários, poderiam garantir ao seu proprietário mais dinheiro. "Mas as pessoas não têm capacidade de espera", diz Igor Olho-Azul, sócio da leiloeira Veritas, explicando que levar uma peça à praça demora algum tempo, não sendo certo sequer se será vendida. Entre a avaliação, a publicação em catálogo e o leilão são necessárias algumas semanas, enquanto numa destas lojas o cliente é pago na hora. A diferença é que em leilão "o mercado paga o valor que acha justo pela peça" e nestas lojas o preço é apenas um cálculo matemático. Para Pedro Maria Alvim, um dos administradores da leiloeira Cabral Moncada, "hoje em dia as pessoas têm muita informação e percebem quando têm uma antiguidade. Quando isto não acontece ou é por ignorância ou por aflição", explica o administrador, garantindo que não tem uma "visão muito alarmista" da situação.

A mesma ideia é partilhada por Isabel Silveira Godinho, directora do Palácio Nacional da Ajuda. "Não acredito que quem tem uma jóia do século XVIII e que sabe o que tem em casa vai pô-la a derreter. Agarra nela e vende-a a um antiquário ou em leilão", diz a estudiosa e coleccionadora de jóias, admitindo, no entanto, que a venda destes bens é cada vez maior. "Basta olhar para os catálogos dos últimos leilões."

Também Isabel Lopes da Silva, proprietária de um dos mais emblemáticos antiquários de Lisboa, não vê, para já, motivo de preocupação. "Não serão muitas as peças importantes a serem derretidas. Acho que está a acontecer uma grande limpeza e claro que no meio disto há sempre coisas interessantes, mas não é o grosso", garante.

Com ou sem conhecimento, a analisar pelo número de lojas, que já chegaram até aos locais mais recônditos do país, este é um negócio em crescimento. Gonçalo Vasconcelos e Sousa não têm dúvidas de que está em causa a perda "de uma das artes que mais veementemente têm levado Portugal a um plano de protagonismo na história das artes decorativas no mundo".